Fernando.


Mariana quis perseguir o cão, mas ele não estava pra brincadeira. Cão deprimido, no fundo da casinha, não quis jogo, nem folia. Mas Mariana insistiu e o cão gostou da fuzarca. Ela sorria com os latidos, os pulos e a língua nervosa, que lambia seu rosto, sem pudor. O cão estabanado se agarrava à Mariana, imitava a cópula, pensando a perna de Mariana como cadela no cio. A pequena não entendia absolutamente nada, mas gargalhava sem parar. Os olhos brilhantes, negros, não permitiam serem encarados. O cão, que não vivia sem condicionador de ar e comida gelada, aproveitava a fuga da melancolia, sua regalia angustiante, proporcionando à Mariana o lazer. Ela devaneava-se em seu pelo macio, a negrura dos olhos caninos a aterrava, entretanto prazia. 
Era assim todo dia, até que a Cristina chamava Mariana para o banho e o cão ficava no quer-mais. Esperava dez, quinze minutos, o dia inteiro, e Mariana o esquecia, tiranamente, no jardim. O cão retornava à melancolia, para voltar a não querer conversa. Até que no dia seguinte, Mariana, de novo, o incomodava. Ele não podia rejeitar a política injusta, não podia criticar o sistema, nem rosnar, como um cão faz, quando não gosta. Mariana não sabia se era sorriso, ou se gargalhada, e com tudo isso, o olho duro, mesmo de um ataque de histeria, de uma contemplação tediosa, como quem vive um eterno retorno, sem precisão de se entregar a um sentimento por inteiro.
Certo dia, o cão acordou querendo brincar. Mariana dormia com a porta do quarto aberta. O cão entrou na casa, procurando sua ingênua dona, encontrando-a babando o travesseiro de penas de ganso, cabelos estapafúrdios, camisola no meio da barriga. Proferiu dois latidos animadíssimos, cheios de expectativa num bom dia de travessuras. Mariana, deleitada em muita preguiça, no apogeu dos seus dez anos, gritou: “Vai te lascar, cachorro! Deixe-me em paz. Suma daqui.” Ele não entendeu as palavras dela. Mas sentiu profunda tristeza. Aos gemidos, saiu do quarto, sem um único rosnado.
         Quando saía de dentro da casa, cabisbaixo, em direção à sua suntuosa casa, esbarrou na cozinheira, dona Érica. Essa o acolheu. Foram à cozinha. Ele ganhou pedaços de carne, muito assunto pra por em dia e um bom presente: um nome. O cão passou a se chamar Fernando. Dona Érica, mulher gorda, amorosa, que gostava de lenço na cabeça, conversava com Fernando, dizendo confidências, reclamações e pilhérias mais infames, vez por outra, dando-lhe cafunés. Fernando parecia sorrir das histórias das pessoas que ouvia nitidamente. Tinha dentro de si, a grandeza de uma baleia, ostentava o espírito de poucas pessoas. E parou com suas angústias. Mariana cresceu tola e melancólica.

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